segunda-feira, 29 de março de 2010

Local de Tortura vira Centro Cultural - Argentina

34 anos do golpe argentino: Local de tortura vira centro cultural.


Depois de uma longa disputa, a presidente Cristina Kirchner inaugura nesta quarta (24), 34° aniversário do golpe militar, um centro cultural dentro da Esma (Escola de Mecânica da Marinha), onde milhares de pessoas foram presas e torturadas durante a última ditadura na Argentina (1976-1983), que ajuda não a esconder, mas a superar os traumas da repressão na sociedade argentina.
Até setembro de 2007, funcionava no prédio o centro de Estudos Estratégicos da Escola de Guerra Naval. Na época, o lugar estava marcado por décadas de descuido e pela atmosfera militar. Em março de 2004, o então presidente Néstor Kirchner expulsou a marinha do local e ordenou que a Esma fosse transformada em um espaço para a memória e a defesa dos direitos humanos.

Na época, a decisão provocou controvérsia. Por um lado, a direita denunciava o “espírito revanchista” do governo e acusava as organizações guerrilheiras, como os Montoneros, de também serem responsáveis pelos chamados “anos de chumbo”. Por outro, imobiliárias criticavam o “desperdício” de não construir um empreendimento no terreno da escola, em um bairro onde metro quadrado é valorizado.

Até as organizações de direitos humanos, que comemoraram o gesto simbólico, não conseguiam chegar a consenso sobre o que fazer com a Esma. Algumas associações de ex-presos e de parentes de desaparecidos defendiam deixar tudo como estava, sem intervenções. Para elas, organizar concertos em um lugar de tortura e morte seria escandaloso.

“Era uma ideia dificilmente aceitável: como explicar para a sociedade que expulsamos tantas entidades da marinha para não fazer nada num local tão grande?”, questiona o diretor do centro, Eduardo Jozami. Para ele, as atividades culturais não desrespeitam a memória das vitimas. “Ao contrário: é uma maneira de convocar mais pessoas para podermos dizer ‘nunca mais’”, argumenta.

O centro, hoje, leva o nome de Haroldo Conti, escritor argentino desaparecido na ditadura, e é o primeiro prédio da Esma a abrir atividades para o público. O local já acolhe diversas atividades: projeções de filmes, exposições, seminários, prêmios literários e cinematográficos. As perspectivas, porém, mudaram totalmente depois da conclusão das obras.

O espaço foi planejado para grandes instalações de arte contemporânea. O galpão principal deu lugar a um teatro com capacidade para 400 espectadores, com um palco móvel. Ao lado, há um cinema para até 100 pessoas. Em frente, uma sala de exposição ostenta um pé direito de 14 metros. Na sala ao lado, será instalada a exposição permanente, constituída por doações de pintores.

“Não existe nenhuma outra sala desse tipo em Buenos Aires”, explica Silvia Yulis, que trabalha no centro cultural há dois anos e destaca ainda a biblioteca com mais de 5,5 mil livros sobre direitos humanos.

Uma das primeiras obras expostas é um carro Ford Falcon desmontado e pintado de branco. Batizada como “Autores Ideológicos”, a peça usa um automóvel que estacionava em frente às casas dos militantes de esquerda para sequestrá-los e aterrorizar a vizinhança, e virou símbolo da ditadura argentina. O desmonte do carro pelos artistas, peça por peça, pode ser visto como uma “autópsia, um exame que procurar encontrar causas para a dor das vitimas”, segundo Jozami.

Divisão

Por causa da cisão e das divergências entre as entidades de direitos humanos, a direção do local distribuiu os prédios entre elas. As Mães da Praça de Maio dedicarão seu espaço à musica popular. Já a Associação das Mães, grupo dissidente presidido por Hebe de Bonafini, abriu o Espaço Cultural Nossos Filhos, instituto de educação na área de direitos humanos.

A associação dos parentes de desaparecidos pretende fazer um anexo do departamento de ciências sociais da Universidade de Buenos Aires e criar um mestrado orientado para direitos humanos. A Unesco instalará atividades em outro local, assim como o Canal Encuentro, ligado ao ministério de Educação. O complexo receberá ainda o Arquivo da Memória, que hoje funciona em edifícios separados na capital argentina.

A dificuldade para organizar todas as atividades da Esma vem desta dispersão. O trabalho também é prejudicado pela estrutura tripla da comissão que dirige o antigo centro de detenção: de um lado, há as organizações de direitos humanos e suas reivindicações contraditórias; de outro, vêm o governo nacional e a cidade de Buenos Aires, que são inimigos políticos. A eleição do prefeito conservador Mauricio Macri em 2007 complicou as negociações. E a Casa dos Oficiais – o local das torturas, chamado de “Cassino” – será mantido intacto, apenas com cartazes explicativos.

A originalidade do Centro Cultural Haroldo Conti é ser o único a depender totalmente do governo nacional argentino. Ainda não dispõe de orçamento próprio, mas Jazumi reconhece que as autoridades sempre deram a possibilidade de financiar a programação. Acima de tudo, o governo pagou todas as obras.

Memória estendida

A curadoria também é uma tarefa delicada. “Temos uma visão dos direitos humanos e da memória muito ampla. Queremos evocar os problemas de direitos humanos hoje, como moradia, imigração, e não só os da ditadura. Também entendemos a memória como estendida a toda a história argentina”, explica Jazumi.

É por isso que o cinema já projetou o filme A Criança, dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne e Adeus, Lênin!, do alemão Wolfgang Becker. “Não dá para convidar o público para assistir só a filmes como Garage Olimpo, porque ninguém aguenta”, resume o diretor, em referência à obra de Marco Bechis sobre a tortura em outro centro de detenção.

“É muito reconfortante, para a gente, ver que este lugar, estas paredes, estes corredores, tudo que abrigou as piores coisas que um ser humano é capaz de fazer, guardam hoje nossa história e nossa memória, e estarão abertos a todos que quiserem saber”, emociona-se a mulher de um desaparecido, que prefere manter anonimato.

Para ela, que ficou muito abalada após ter visitado o “Cassino”, conhecer as instalações traz vida e energia. “Fazemos tudo que podemos para homenagear nossos companheiros que não estão mais aqui, honrando a história e a memória deles, com a certeza de que lutar pela verdade e pela justiça não é em vão, apesar da lentidão do processo”, conclui.

Fonte: Opera Mundi

Leia também: Por dentro da escola de tortura argentina

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