Escravidão e capitalismo, uma relação estranha e familiar
Têm sido constantes as denúncias de escravização de trabalhadores no país – é disso que se trata, e não do “emprego de mão-de-obra escrava”, pois nunca se empregam apenas mãos, nem há escravos que são empregados pelos capitalistas, como alertam os professores Mário Maestri e Florence Carboni em A linguagem escravizada (ed. Expressão Popular). A diminuição das operações de fiscalização do Ministério do Trabalho na Era Lula (http://www.brasildefato.com.br/node/6451 ) faz com que só não haja mais espaço no noticiário cotidiano por causa da falta de atratividade do assunto para a mídia corporativa. Interessa-a muito mais a “crise” dos mercados, da moeda, da Europa, dos EUA, e tantas outras que acabam reduzindo os holofotes da pujança da economia capitalista do Brasil (como da Rússia, da Índia e da China, ou seja, do quarteto fantástico chamado BRIC) e, muito mais ainda, a redução dos holofotes dos imensos custos sociais dessa pujança. Que o digam aqueles que serão diretamente afetados pela usina de Belo Monte, pela estrada no Tipnis na Bolívia e pelas remoções para a Copa.
Recentemente circulou a informação de que alguns usineiros de São Paulo têm estimulado o uso de crack pelos cortadores de cana, o que lhes renderia jornadas de 14 horas de um trabalho que já é, de qualquer modo, absolutamente mortificante. Mas se o propósito deles é “socialmente legítimo” – o aumento da produtividade, o crescimento da economia, produção de biocombustível, maior arrecadação de impostos e geração de empregos, etc. – por que motivo os patrões se envergonham tanto e tergiversam diante dessa dura realidade, a de que o trabalhador só lhes interessa enquanto sujeito que possa despender o máximo de sua capacidade laboral durante o tempo de trabalho, e que “todo o resto” lhes é indiferente? (com exceção, é claro, dos investimentos feitos em prol do aumento ou qualificação dessa capacidade de trabalho, que depois retorna para...)
Em O Capital, Karl Marx, quando analisa a acumulação primitiva, cita o trecho de um livro de T. J. Duning de 1860 (“Sindicatos e Greves”) que nos aponta para essa duplicidade entre pudores e falta de pudores dos investimentos capitalistas.
O capital foge do tumulto e da discussão e é tímido por natureza. É bem verdade, mas não totalmente. O capital tem horror à ausência ou pequena quantidade de ganhos, da mesma forma como a natureza tem horror ao vácuo. Com um ganho satisfatório, o capital se encoraja. Assegurem-lhe 10% e ele irá onde for; com 20%, ele se anima; com 50%, ele se torna positivamente temerário; com 100%, passa por cima de todas as leis humanas; com 300%, não há crime a que ele não se arrisque, inda que sob a ameaça do patíbulo [forca]. Quando o tumulto e a discussão podem trazer lucros, ele os fomentará. A prova disso: o contrabando e a escravização dos negros.
As imensas fortunas, que se mostram assépticas, que se creem resultado de especulação, sorte, herança, fusão, etc., todas elas são a capitalização dessas violentas extorsões passadas e cotidianas, que nunca ficam muito tempo na mão dos pequenos e médios proprietários – sendo que estes sempre correrão o risco de terminarem como o coronel Moraes de Deus e o Diabo na Terra do Sol (filme antológico de Glauber Rocha), morto pelo facão de Manuel, o vaqueiro extorquido. Como escreve a historiadora Virgínia Fontes em seu livro O Brasil e o capital-imperialismo (ed. UFRJ), a atual concentração de capital é tão faraônica que os seus proprietários são incapazes eles mesmos de supervisionarem a sua aplicação, de modo que “o capital, essa massa de trabalho morto acumulado sob a forma de dinheiro, controla seus controladores”. Desse modo, a extorsão de trabalho é cada vez mais um fenômeno social, distribuído entre vários agentes intermediários que supervisionam o emprego dos capitais nas atividades produtivas.
Há, no entanto, outras formas cotidianas e “democráticas” de extorsão: a da pessoalidade. Em sua apresentação no V Seminário de Estudos em Análise do Discurso (SEAD), poucos dias atrás, a professora Solange Mittmann, da UFRGS, nos mostrou que vivenciamos um processo ideológico de denegação de nossa memória escravista. Tanto em textos jurídicos (como o artigo 149 do Código Penal, que fala em “redução à condição análoga a de escravo”) quanto em tuitadas politicamente incorretas (“Acabei de sair da Zara e tenho de confessar que as crianças escravas estão fazendo um ótimo trabalho”), a língua vem dando nos dentes, mostrando que os trabalhadores escravizados também sofrem uma despessoalidade e até uma contra-pessoalidade – usando as expressões de Mittmann. Vê-se que entre a realidade do mercado de trabalho e os direitos sociais existe um abismo, e que a escravidão é algo ao mesmo tempo estranho e familiar ao capitalismo, com seus sujeitos livres, liberados, despojados, de modo que possam ser – por “umas horinhas” do dia, vá lá – nada mais do que coisas que se entregam por si mesmas.
Texto de Rodrigo Fonseca
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