Por Adriana Carvalho *
Quando se pensa nos processos de Independência que sacudiram a América Latina no século XIX, surge na lembrança sempre os grandes homens, heróis como Simón Bolívar, Belgrano ou San Martin. No imaginário latino-americano ficaram gravadas imagens de grandes batalhas, de exércitos rebeldes comandados pelos criollos, que lutaram contra o poderio espanhol. Entretanto, não povoa neste imaginário a presença das mulheres, pois a tradição historiográfica da “História dos grandes homens” não as contempla. Todavia, cabem indagações sobre a atuação feminina, uma vez que o território não era habitado apenas por indivíduos do sexo masculino.
Um passo importante na resolução destas questões tem sido dado por meio de pesquisas sobre a atuação das mulheres nas lutas pela Independência, seja cumprindo tarefas de mensageiras, atuando enquanto suporte logístico (cozinhando, lavando), e até mesmo dirigindo batalhões. Uma obra que auxilia no sentido de problematizar estas questões é “ América Latina no século XIX – Tramas, Telas e Textos” (ed. Edusp) de Maria Lígia Coelho Prado. O primeiro capítulo é dedicado a investigar exatamente a questão da intervenção feminina na história da América Latina, o que permite uma primeira aproximação com o tema.
Uma das primeiras figuras femininas na história da América Latina no século XIX é venerada na Argentina: donã Diolinda Correa que, com o filho ainda bebê, seguiu o marido, rumo ao campo de batalha com exército de facundo Quiroga. A luta em questão era o embate entre federalistas e unitários, que dividiu a Argentina no momento posterior à Independência. As dificuldades do terreno e a falta de alimento e de repouso a levaram à morte. Neste momento, Diolinda, ou Defunta, deixa a vida para entrar na mitologia.
A lenda construída em torno de sua figura diz que as dificuldades a levaram a morte e que, no momento em que seu corpo foi encontrado, seu filho estava em seus braços, vivo, sendo alimentado pelo leite que saia de seus seios, mesmo ela estando morta. As condições de sua morte transformaram doña Difunta Correa em mártir e, pouco tempo depois, em santa. Atualmente, representa um dos ícones da campanha de amamentação em alguns países da América Latina.
Outra grande mulher que se envolveu de modo bem efetivo na luta foi doña Juana Azurduy de Padilla, que, junto ao marido, lutou contra as forças realistas no vice-reino do Alto Peru. Esta mulher se envolveu em cerca de 23 ações armadas, comandando um batalhão de mulheres, denominadas na época de “las amazonas” e chegou à patente de tenente-coronel.
Era admirada por sua bravura e determinação e nem a morte do marido fez com que se abatesse, pois seguiu lutando até o triunfo da causa rebelde. Após a emancipação do território argentino, Juana passou a receber uma pequena ajuda financeira do governo, como forma de retribuição aos serviços prestados para a causa da Independência. Juana havia perdido todos os bens, e o marido. A única pessoa que sobreviveu além dela foi uma filha. Pouco tempo depois, deixou de receber a ajuda governamental, falecendo aos oitenta anos, pobre e esquecida. Clique aqui e ouça uma música feita para Juana Azurduy, na voz de Mercedes Sosa.
No México, há doña Leona Vicario, que, como Juana, era oriunda também de uma família de muitas posses. Ainda adolescente tornou-se orfã, indo viver com o tio. Se envolveu com a causa insurgente através do noivo, Andrés Quintana Roo, partidário da causa da independência. O pedido de casamento foi recusado pelo tio-tutor de Leona. O noivo foi para o campo de batalha, lutando com as tropas de Morelos em Oaxaca, e a jovem o auxiliava a distância, fornecendo-lhe informações e chegou a ser presa.
Após a fuga da prisão, foi lutar junto a Andrés pela independencia mexicana, casou e teve filhos no auge do processo de luta contra os realistas. Após a Independência, prosseguiu na luta, desta vez nas fileiras do Partido Federalista. Sua atuação política foi marcante na sociedade mexicana do período, o que, quando da sua morte, fez com que recebesse homenagens inclusive do presidente, Carlos Maria de Bustamante, que declarou ser Leona “el ornato de su sexo y la gloria de su patria” (ornamento de seu sexo e a glória de sua pátria).
Ainda no México há Josefa Ortiz de Domínguez, mais uma jovem de posses que tem contato com os insurgentes. Josefa era casada com Miguel Domínguez, corregedor da região de Querétaro. Quando se inicia o processo de conspiração pela independência mexicana, o casal alia-se aos conspiradores e Josefa cumpre um importante papel como “mensageira” dos rebeldes.
O papel de mensageira foi desempenhado por inúmeras mulheres entretanto, vale destaque uma delas, donã Policarpa Salavarrieta (la Pola), do vice-reino de Nova Granada (atuais Venezuela, Colombia e Panamá). De família humilde, Pola trabalhava como costureira e tinha livre acesso às casas mais nobres (pela porta das empregadas).
Aproveitou-se da ingenuidade de seus patrões (majoritariamente realistas) para desempenhar sua tarefa, a de espiã da causa rebelde. Sua facilidade deveu-se ao fato do próprio preconceito da sociedade da sua época: poucos podiam imaginar que aquela simples serviçal seria um importante elemento da causa rebelde, e falavam abertamente sobre política diante dela. Durante muito tempo, Pola dedicou-se à espionagem, mas um dia foi descoberta e presa, sendo fuzilada em praça pública diante de uma multidão indignada. Antes de morrer, Pola fez um discurso fervoroso, em que denunciou a opressão imposta pelos espanhóis .
O fato é que a vida de nossas heroínas por si só, daria vários romances. As narrativas que envolvem estas mulheres são povoadas de conspirações, paixões, fuzilamentos, abdicações e fugas, bem à moda latino-americana. Todavia, qual a memória se perpetuou? Como primeira reflexão, há que se analisar que poucas vezes essas mulheres são lembradas quando se pensa na trajetória política dos países pelos quais elas lutaram.
O que há de subsídio para a compreensão dos diferentes papéis das mulheres nos processos de Independência da América Latina muitas vezes se restringe ao esquecimento, uma vez que são poucas as fontes documentais acerca da atuação feminina nas batalhas.
Um recurso ultilizado pela História foi transformá-las em mitos, lendas, totalmente desarticuladas da política e, portanto, desconsideradas enquanto “sujeitos” que fizeram a História, que conspiraram, que lutaram, seja pegando em armas, seja apropriando-se de informações. Ter acesso a estes fatos e dialogar com esta memória, pode ser um importante referencial na busca da identidade política da mulher latino-americana contemporânea.
Na atualidade, uma série de mulheres se envolvem no meio político, tendo acesso aos altos postos da hierarquia dos países latino-americanos. Não cabe aqui fazer uma análise sobre o que representa o governo de Michele Bachelet no Chile, ou da candidatura de Cristina Kirchner para a presidência da Argentina todavia, devemos reconhecer que as mulheres latino-americanas, temos um histórico de luta, pois muitas vieram antes de nós.
* Adriana de Carvalho Alves, historiadora (Faculdade Teresa Martin), professora de escola pública, integrante do grupo Canto Libre e latino-americana. Clique aqui para entrar em contato.
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